Thursday, september 27, 2012
a grandeza de Dostoiévski
"Sua fisionomia lembra a de um camponês. As faces fundas, cor de terra, quase sujas, são pregueadas e enrugadas por um longo sofrimento. A pele ressecada, descolorada, privada de sangue por vinte anos de doença. De um lado e de outro dois blocos de pedra salientes: as maçãs eslavas contornam a boca dura; o queixo de traços muito firmes coberto por uma barba emaranhada. A terra, as rochas, a floresta, uma paisagem primitiva e trágica, tal nos parece o rosto de Dostoiévski. Tudo é sombrio, perto do solo sem beleza desta face de camponês, quase de mendigo: achatada, sem vida, sem cor, uma parcela da planície russa projetada sobre a pedra. Mesmo os olhos, encovados na sua órbita, não conseguem iluminar essa argila fria, porque a sua flama não se irradia para o exterior, para nos iluminar e cegar. Olham, por assim dizer, para o interior, queimam o sangue com o seu olhar penetrante. Desde que se fecham, a morte paira sobre esta fisionomia; à tensão nervosa que mantinha os seus traços suaves sucede uma letargia.
Nossa sensibilidade faz-nos a princípio recuar diante desse rosto como nos faz recuar diante da obra; mas eis a admiração que se apodera de nós timidamente, a princípio, depois com paixão, com entusiasmo crescente. Porque não é o que há de carnal, de baixamente humano, no seu rosto que projeta a luz sobre esse luto primitivo, ao mesmo tempo sinistro e sublime. Tal uma cúpula de brancura resplandecente, a fronte poderosa e abaulada eleva-se acima dessa face estreita de camponês.
Toda a luz aflui para o alto dessa fisionomia: quando se olha o seu retrato não se vê senão a fronte larga, poderosa, majestosa, cujo esplendor e cuja amplidão parecem aumentar à medida que o rosto vai sendo consumido pela idade, a moléstia e os desgostos. Alto como o céu, inabalável, domina esse corpo caduco, a auréola espiritual sobre a miséria física. Em nenhuma parte desse santuário de espírito vitorioso resplandece melhor do que no retrato representando Dostoiévski sobre o seu leito de morte, onde suas pálpebras estão caídas sobre os olhos apagados, onde suas mãos descoloradas apertam firmemente, avidamente o Crucifixo (esse pequeno Crucifixo de madeira que uma camponesa deu, outrora, ao forçado). Aí essa fronte, tal como a aurora sobre uma paisagem noturna, ilumina esse rosto inanimado em todo o seu esplendor, proclama a mesma mensagem que a sua obra inteira: o espírito e a fé o liberaram da vida corporal, melancólica e inferior. É no fim de tudo que está a grandeza de Dostoíévski: em nenhum outro momento seu rosto foi mais expressivo que na morte".
Stefan Zweig,
Dostoiévski
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